terça-feira, junho 07, 2005

Estrofes pagãs

Antestrofe

Da névoa nos desperta o sentimento
E é forma indefinida:
É força dum mistério e num momento
Espírito da vida.

Estrofe I

Dentre os ciclos da Treva se desbrave
O antigo caos da Sombra desmedida:
E viva em nós melódica e suave
Toda a beleza cósmica da vida.
Que o fulvo e astral encanto das searas
Dos astros e da terra, em seu fulgor,
De altas estrofes, lúcidas e raras,
Mova em nós vivos cânticos de amor.
Da minh’alma às genésicas pinturas
Do fogo das origens me responda
Sua orquestra de ousadas aventuras.
E em livres sentimentos de alto verso,
O meu verbo se anime e corresponda
Nas múltiplas escritas do Universo.

Estrofe II

Do largo e antigo imaginar profundo
Removam-se as proscritas maravilhas:
─ Aparências fantásticas do mundo,
─ Monstros do Mar sulcando à flor das ilhas.
Repassados de artísticos compassos
Aos flavos Sóis e aos tempos vos semeie,
Minha bátega fluida de pedraços,
Forte rima de versos que ideei.
Que o engenho do meu cântico se afoite
Às invocadas órbitas da Noite
Em que me envolve o espírito da vida.
E da força-mistério, no tormento
Da névoa, me desperte o Sentimento
Da grande fé que trago indefinida.

Estrofe III

Era um denso monte de florestas
De altos cedros de aspecto carregado,
Sem perfumes de flor, um monte dado
A rios de sombras lúgubres, funestas.
Já dos lúbricos céus, do fundo espaço,
Vinha o Luar dum fogo apetecido;
E a Sombra dava às terras um compasso
De músicas pagãs amortecido.
E por sítios agrestes que tomara
Para cuidados de alma compassivos
Da discussão das coisas que buscara,
Tomei por essa noite colorista,
Sonâmbula de efeitos primitivos,
Por uns instintos bárbaros de artista.

Estrofe IV

Os seixos dos regatos se moviam
Pelos leitos arientos, sorvedoiros,
E voluptuosos da água se faziam
À música nocturna dos agoiros.
Na miragem dos túrbidos pauis
Olhavam-se pacíficas, errantes,
As estrelas dos paramos distantes
Sob o lúbrico olhar dos céus azuis.
Das árvores e rocha ao som do vento
Tudo ali me responde em redondeza:
Que sonhava em seu vasto ensinamento,
De tão vívida e livre, a natureza
Caber-me toda n’alma e pensamento
Em paisagens de amor e de beleza.


Estrofe V

Estava à maravilha, estranho amante,
Em minhas sete-quintas, e, palácio:
Tinha os astros de meu, profundo espaço e o
Côncavo da alta noite edificante.
Do amor flosofavam-me no peito
Rimas de oiro lavradas, os glossários
Da palavra das coisas e o respeito
Do silêncio dos cedros mortuários,
Quando, ao fundo das árvores do monte,
Mais para a sombra donde me ficava
A clareira da névoa do horizonte,
Apercebi na mente irrequieta
Dos longes uma voz que me embalava
Dest’arte, fortemente, de Poeta:


Estrofe VI

«Eleita e bafejada trancendência:
Homem, fera real, naturalmente
Da mímica das coisas viva essência
Por séculos cuidada ocultamente,
Que lugares da Terra vens buscando
E figuras de estilo te consomem?
Que ar de alma, aveludado e leve e brando,
Do sopro das paisagens te fez Homem?
Que castelo de sonho e fantasia
Que andas velho moiramas a aventar?
Grande vivo de amor melancolia,
Tu tens um coração peninsular
Como um rochedo em bronca penedia
Debruçado nos côncavos do Mar».


Estrofe VII

«Dum bálsamo suave de perfumes,
Tomada de imprevistos, visionária,
A tua alma recorda-me altos numes
Duma heróica beleza antiquária.
Dentre o iletrado encanto das paisagens
Aprendes as palavras que procuras;
Vendo as rezas das seivas que reagem,
Teus olhos são dois lagos de venturas.
Mas força é deste século, ó Mortal,
Ò bárbaro dos brejos e das árvores,
─ Fidalga maravilha universal
É que à torva bruteza empedernida,
Às quebras da água, ao longe, aos frios mármores,
Arranques todo o espírito da vida».


Estrofe VIII

«Vê que tragos de instintos primitivos
São alma da tua alma tão parentes,
No seio geometral dos cristais vivos,
Nas andadas soturnas das sementes.
Vê como as águas fazem sua ideia
Dando aos rios por íntimos trejeitos
Um todo cumprimento de respeitos
Quando as marés preguiçam pela areia.
E, olhos em Deus, levanta à rocha dura
Um cântico de versos naturais,
Que a pedra é fidalguíssima estrutura,
Muito mais familiar do que os metais;
Alma de antigo tempo, alma futura,
É o mármore carnal dos imortais».


Estrofe IX

«Vendo o espaço amovível da amplitude
De um contorno de altíssimas montanhas
E as belezas fantásticas, estranhas,
Do relevo virtual que nos ilude;
Olhar de um fogo de alma apreensiva,
A um tempo visionário e logo sábio,
Na íntima comunhão, do verbo e lábio
Do inânime brutal à vida-viva;
Sem os mitos da torva heroicidade
Canta qual Sileno mantuano
O plástico viver da imensidade.
Aprende amar dest’arte, ó todo artista,
Num bálsamo suave e sobre-humano
O grande amor da Terra-panteísta».

Afonso Duarte

[Ereira, Montemor-o Velho, 1884-1958]