quinta-feira, junho 30, 2005

Os tristes herdeiros dos barões falidos

Os tristes herdeiros dos barões falidos
À mesa da revolução digo refeição
Digerem o povo digo polvo
Com requintes de liberdade.

Paulo Cid

e, naturalmente a ajuda de a.m.

suspicaz estreia

Abencerragem ainda hoje em imperfeita paz com tecnologias bem mais simples (bela crónica,a propósito,a de Eduardo Prado C oelho hoje no Público), arrisco este ensaio escourado na confiança nos ensinamentos que o sempre paciente Zé Albergaria procurou verrumar por esta carapaça de pré-tecnológico.Se tiver resultado,e bem suspeito que não, vai um abraço para os amigos,a quem o nosso Rogério,penitenciando-se embora de arqueológica francofonia (filia?...),aqui crismou de "blogueurs" mas que me têm dado preciosos momentos de tertúlia bondiana graças às respectivas e preciosas qualidades de "blagueurs" ( e esta,oh RÓGER,quer dizer,oh ROGÊ?) .
Se tiver êxito,e disso tiver eco,desde já ameaço reincidir.
E,para primeiro contributo,este pensamento de um Manuel Maria Carrilho ainda não formatado em candidato à CML,mais precisamente em idos de Outubro de 2001:
"Parece sempre que está tudo dito,e,no entanto,é raro que se toque sequer no essencial".
Toma e embrulha!

João Grego Esteves

quarta-feira, junho 29, 2005

Canciones 9

Azul de madrugada
En el puerto de Málaga.
El aire ríe, el aire,
igual que una muchacha;
junto al Perchel, sonrisas
y miserias y desgracia.

En el puerto de Málaga.


Blas de Otero
[n. 1916]

a.m.

Provérbio do dia

Não se pode ser burro em tempo de moscas.

a.m.

Poemitas III

I

Entre olivais perfilada
Varada, luminárias diurnas
Irrequieta, vésperas nocturnas
No meu regaço enovelada


Deitámo-nos em cama natural
Vertiginoso falar
Mirámo-nos no azul solar
Como em sonho de postal


Descompu-la de baixo a riba
Colhi-a, flor d'azevinho
Piquei-me, sulco adivinho
Amaciei-a, sons d'escriba!


Andarilhámos
Sós nos insinuámos
A eternidade nos acolheu
E pronto s'enterneceu!


II

Falámos
Corpos enrolados
Molhados
Penámos


Corpos ardentes
Dança agreste
E preste
Sexos intrometentes


Yin e yan
Um é preto, outro flauta de pã
Um pleno, outro adverso


Humanos seres
Carregados de genes
Antes que criogenes!


J. Albergaria

terça-feira, junho 28, 2005

Algum dia você poderia?

Manchei o mapa do quotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco
e mostrei oblíquas num prato
as maçãs do rosto do oceano.

Nas escamas de um peixe de estanho
li lábios novos chamando.

E você? Poderia
algum dia
por seu turno tocar um noturno
louco na flauta dos esgotos?

Vladimir Maiakovski
[Bagdádi, 1893-1930]
Tradução brasileira de Augusto e Haroldo de Campos

(a.m.)

Sorpresa

Muerto se quedó en la calle
con un puñal en el pecho.
No lo conocía nadie.
!Cómo tremblaba el farol!
Madre.
!Cómo tremblaba el farolillo
de la calle!
Era madrugada. Nadie
pudo asomarse a sus ojos
abiertos al duro aire,
que muerto se quedó en la calle
que con un puñal en el pecho
y que no lo conocía nadie

Federico Garcia LOrca
[1898-1936]
(a.m.)

domingo, junho 26, 2005

Elegia do amor/I

Lembras-te, meu amor
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos,
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve ─ sim! ─,
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo era tão fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
─ que incêndio! ─ e eu, a rir,
Disse-te: ─ É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu…
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.


Teixeira de Pascoaes
Amarante, 1877/1952


a.m.

quinta-feira, junho 23, 2005

demissão de a capital

caros blo(a)gueurs -- a minha francofonia dá-me para isto-- como já devem ter sabido pela comunicação social, acabo de acompanhar na demissão de a Capital, o Luís Osório. Foi um ano intenso e de intensos afectos. Mas os valores nunca devem ser substituídos pela sujeiçãoà sobrevivência sem princípios. A Capital foi um grande projecto.Chega ao fim por falta de cumprimento da administração de algumas 'coisas' que nos tinham sido prometidas. Chegou ao fim um ciclo de vida. Outro virá. Bom é que se mantenha sempre a solidariedade e que alguém, seja qual for a sua idade, saiba assumir os valores, acima dos interesses mais imediatos. Mas a vida, após mais de cinco décadas de existência, ensinou-me algo: os medíocres acabam por ganhar sempre.É por isso que o país está como está. E a Europa também.
Apostila, em substituição de PS: lá estarei na quarta-feira e poderemos então no espaço Bond debater utilidades e inutilidades porque, às vezes, não hánada mais útil do que sustentarmos inutilidades. Aos meus escassos leitores agradeço o esforço deste ano. Eu sei que muitos tiveram que ir ao oftalmologista.
um fraterno abraço

Rogério Rodrigues

quarta-feira, junho 22, 2005

À Morte do Poeta António Machado

Mais te valeu morrer. Quantos favores
Da morte, só, podias esperar!
Não viste a tua pátria agonizar;
Nem conheceste o exilio e as suas dores.
Conduziram-te à terra os pescadores.
E ali, na solidão da beira-mar,
Continuas, Marena, a divagar
E em vez de versos, desentranhas flores.
Foste cair, é certo, em terra estranha;
Mas na alvorada, apenas, da amargura,
Às portas do desterro e ao pé de Espanha.
Levaste para a cova, ainda, a esperança
E Deus poupou-te a esta desventura:
Ter de tragar o fel da «doce França».

Amélie-les-bains
noite de 24 de Fevereiro de 1939
Jaime Cortesão

(J. Albergaria)

Jorge Sampaio: "mais vale tarde..."

As declarações do Presidente da República (ou seria o cidadão Jorge Sampaio a falar...), feitas ontem, dia 21 de Junho de 2005 - produziram um mor impacte na sociedade e em alvos determinados (ou serão efeitos do solstício do Verão?...).
Jorge sampaio decidiu questionar a Banca; decidiu interrogar os professores; decidiu interrogar o Governo e decidiu ainda interrogar-se sobre o desígnio nacional, para os próximos anos.
Em meu entender fê-lo bem, com contundência e de modo certeiro.
Em meu juizo não falhou um único alvo e vai obrigá-los, todos eles, a reflectirem e a ponderarem as palavras do Presidente da República (ou seria o cidadão Jorge Sampaio a falar...).
Os banqueiros já falaram, na defensiva, a meterem os pés pelas mãos, dizendo que a conjuntura económica não está para se assumirem riscos, que é necessário prudência e bla, bla, bla, bla...
Os professores, esses, preocupados com a greve (que só por acaso coincidiu com os exames nacionais...), ainda não tiveram vagar de responder ou comentar as palavras do Presidente da República (ou seria o cidadão Jorge Sampaio a falar...).
O Governo, esse, vai ter mais algum tempo que os outros visados para discorrer sobre a retórica presidencial.
E Portugal, a esse, depois das palavras do Presidente da República (ou seria o cidadão Jorge Sampaio a falar...) só faltará mesmo é - cumprir-se!
J. Albergaria

segunda-feira, junho 20, 2005

Meu país desgraçado

Meu país desgraçado!...
E no entanto há sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!...
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
─ busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
─ olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundara
que só por Amor te não desprezam!

Sebastião da Gama
[Azeitão, 1924-1952]
a.m.

Poemitas II

I
Próximo é compaixão
Outro, sedução

Nocturno é acusação
Diurno, iluminação

Aurora é posição
Crespúsculo, encantação

Deus: projecção!
Homem:equação!


II

Esquadro, matéria sonorosa
Espirito, delicado compasso
No templo, a passo
Via sacra dolorosa

Nas trevas deixa-te guiar
Fraterna irmandade
Terna bondade
Traz-me luz p'ra t'encaminhar

Humildade, absolutu
Diante do génio, fenece a divindade
Improvável factu
Irmão, padece de probidade

J. Albergaria

domingo, junho 19, 2005

Não sei de amor senão

Não sei de amor senão o amor perdido
o amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não pára de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.

Não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.

Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dói no corpo ferido
onde não deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido.

Não sei de amor senão o sem sentido
deste amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.

Não sei de amor senão o não haver
Amor que dure mais que o não tido.
Há um corpo que não pára de doer
só esse é que não morre de tão perdido
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei de amor senão o amor ferido.

Não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter tido
o teu corpo de ser e de não ser
só esse é meu por nunca ter ardido
não sei de amor senão esse perder.

Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.

Manuel Alegre

quinta-feira, junho 16, 2005

Matéria poética V

num lado
embalado
na toada
da balada
desolada.
noutro lado
lido
com o
balido
e o berreiro
do cordeiro
combalido.


a.m.

quarta-feira, junho 15, 2005

Haikais

No espaço traça
Traços ocultos a graça
Do voo da garça.

Nos pequenos lagos
Em liberdade, os peixes
Aprisionados.


a.m.

terça-feira, junho 14, 2005

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

segunda-feira, junho 13, 2005

Eugénio de Andrade . Esboço biográfico

Eugénio de Andrade. Poeta. (19.01.1923─13.06.2005). José Fontinhas, de seu verdadeiro nome, nasceu em Póvoa de Atalaia (Fundão), no meio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, actividades pelas quais demonstrou desde cedo profundo interesse, a partir da descoberta de trabalhos de Guerra Junqueiro e António Botto. Camilo Pessanha constituiu outra forte influência do jovem poeta Eugénio de Andrade. Embora não se integre em nenhum dos movimentos literários que lhe são contemporâneos, não os ignorou, mostrando-se solidário com as suas propostas teóricas e colaborando nas revistas a eles ligadas, como Cadernos de Poesia, Vértice, Seara Nova, Sísifo, Gazeta Musical e de Todas as Artes, Colóquio, Revista de Artes e Letras, O Tempo e o Modo, e Cadernos de Literatura, entre outras. A sua poesia caracteriza-se pela importância dada à palavra, quer no seu valor imagético, quer rítmico, sendo a musicalidade um dos aspectos mais marcantes da poética de Eugénio de Andrade, aproximando-a do lirismo primitivo da poesia galego-portuguesa ou, mais recentemente, do Simbolismo de Camilo Pessanha. O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza, lugar de encontro) ou luta (cidade, lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo é, assim, igualmente essencial na poesia de Eugénio de Andrade, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Homem, são inseparáveis, como o comprova, por exemplo, o paralelismo entre as idades do Homem e as estações do ano. A evocação da infância, em que é notória a presença da figura materna e a ligação com elementos naturais, surge ligada a uma visão eufórica do tempo, sentido sempre, no entanto, retrospectivamente. A essa euforia contrapõe-se o sentimento doloroso provocado pelo envelhecimento, pela consciência da aproximação da morte (assumido sobretudo a partir de Limiar dos Pássaros), contra o qual só o refúgio na reconstituição do passado feliz ou a assumpção do envelhecimento, ou seja, a escrita, surge como superação possível. Ligada à adolescência e à idade madura, a sua poesia caracteriza-se pela presença dos temas do erotismo e da natureza, assumindo-se o autor como o «poeta do corpo». Os seus poemas, geralmente curtos mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evocação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos. Foi galardoado com o Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, atribuído a O Outro Nome da Terra, em 1988, e com o Prémio de Poesia Jean Malrieu, por Branco no Branco, em 1984. Recebeu ainda, em 1996, o Prémio Europeu de Poesia. Foi criada, no Porto, uma fundação com o seu nome. Autor de uma importante obra poética, podem referir-se os seguintes títulos: Adolescente, em 1942, As Mãos e os Frutos, em 1948, Os Amantes sem Dinheiro, em 1950, As Palavras Interditas, em 1951, Até Amanhã, em 1956, Conhecimento da Poesia, em 1958, O Coração do Dia, em 1958, Os Afluentes do Silêncio, em 1968, Obscuro Domínio, em 1971, Limiar dos Pássaros, em 1972, Véspera da Água, em 1973, Memória de Outro Rio, em 1978, Matéria Solar, em 1980, O Peso da Sombra, em 1982, Poesia e Prosa, em 1940, 1989 e 1990, O Sal da Língua, em 1995, Alentejo, em 1998, e Os Lugares do Lume, em 1998. Organizou, ainda, várias antologias, como a que dedicou ao Porto (Daqui Houve Nome Portugal, em 1968) e a Antologia Breve, em 1972. Escreveu também livros para crianças. É um dos poetas portugueses mais traduzidos para outras línguas.


a.m.

Pequena elegia de setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
tão alheiaque nem dás por mim.


Eugénio de Andrade

[Póvoa de Atalaia, 1923 - Porto, 2005]

Alvaro Cunhal: várias "pessoas", muitas "mascaras", uma só personagem

A morte anunciada de Alvaro Cunhal ocorreu hoje dia 13 de Junho, exactamente no mesmo dia em que Fernando Pessoa (o estranho estrangeiro) nasceu.

Hoje dir-se-ão muitos disparates sobre o Homem, sobre o actor da história, sobre o político, sobre o escritor, sobre o desenhador e sobre o papel relevante que teve no Século XX.

Discussões acaloradas já estão a desenrolar-se em torno do Homem e dos olhares que outros têm sobre o mesmo.

O comentário "solto" de Mário Soares, feito pela manhã, sobre Alvaro Cunhal já desencandeou uma míriade de opiniões apaixonadas!

Zita Seabra escolheu como in memoriem a prática de desenhador de Cunhal durante as reuniões partidárias.

Muito se dirá sobre Ele, mas muito mais se construirá em torno do Mito.

O PCP se encarregará de o confirmar.

Há uns bons anos atrás, alguém próximo de Cunhal, dizia:"Ao Alvaro só lhe falta conquistar o Poder!" Este poder não era o do Partido, mas o de Portugal.

Sempre lhe pesou muito esse insucesso e era o que mais o incomodava na relação "tensa" que manteve com Mário Soares.

No XX.º Congresso do PCP, realizado no Porto, em "vésperas" das Eleições Presidenciais de 1986, Alvaro Cunhal afirmou, na tribuna do mesmo, naqueles seus discursos de três horas, e cito, repetindo a frase três vezes: (...) "em nenhuma circunstância votaremos Mário Soares!"

Todos sabemos a história posterior...

Um outro aspecto curioso, dum periodo da nossa história recente ainda por aclarar, passou-se durante o 25 de Novembro de 1975.

Diz-se que Cunhal foi o reponsável por não ter havido uma Guerra Civil em Portugal. Isto já faz parte do Mito. O que é certo é que a 27 de Novembro de 1975, numa reunião de "quadros" do PCP, completamente detroçados e sem ânimo, Cunhal terá afirmado que " o Careca (o Almirante Rosa Coutinho) não teve coragem para fazer avançar os fuzileiros".

As duas unidades militares então com capacidade para desiquilibrarem a relação de forças: os Fuzileiros de Vale de Zebro e os Comandos da Amadora. Como se sabe os Comandos de Jaime Neves avançaram - em defesa do modelo de Democracia sustentado pelos Nove (Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vitor Alves, etc). Os fuzas, esses, ficaram-se nas covas da margem esquerda do Tejo!

A obra espantosa de José Pacheco Pereira sobre Alváro Cunhal, em quatro enormes volumes (já sairam dois) trás este fantástico personagem à luz do dia, dando-lhe as cores do Homem e da sua circunstância!

Que Cunhal era um sobredotado? Ninguém questiona tal qualidade! Que Cunhal poderia ter sido enorme se tivesse abraçado a escrita de ficção? Ninguém duvida de tal. Que Cunhal poderia ter sido um grande pintor e um excepcional tradutor de Shakespeare? Ninguém põe em causa tal presunção.

Agora, o que de facto Cunhal quiz ser foi o Leader incontestado do PCP, formantando-o aos tempos que lhe calhou em sorte viver. Isso ele conseguiu plenamente.

Veja-se ainda a sua dedicação sem limites à Causa da União Soviética (que durou décadas...) e veja-se, depois da implosão do Império, a aproximação que o PCP faz, ainda sob a sua Direcção - ao Partido Comunista da China, com quem travou violentos combates ideológicos, mas que razões pragmáticas o obrigaram a "ponderar" e a "considerar".

Há quem afirme que Alvaro Cunhal queria instalar em Portugal, uma espécie de Cuba da Europa. Errado. Nunca esteve nos projectos da União Soviética desiquilibrar a Aliança Atlântica. Enfraquecê-la: sim! Destrui-la: nunca!

Hoje, muito se dirá de Cunhal.

Merece-o porque atravessou o Século XX, não só como testemunha atenta e privilegiada, mas como actor de primeira grandeza - dum mundo que hoje já não existe!

Este é o drama dum Homem e duma Vida excepcionais vivida na luta por um Ideal (é o que é comum dizer-se...) que se evanesceu, que desapareceu!

O que a História guardará dele? Não faço a mais pequena ideia.

Mas como a História é escrita pelos vencedores, desconfio muito em quantas linhas se falará do seu papel na luta antifascista e na construção do regime democrático pós 25 de Abril de 1974


J. Albergaria

Em preito de tristesa e homenagem

Hoje iniciou uma nova viagem o poeta Eugénio de Andrade, que se "abrigava" atrás do Inspector Fontinha (creio ser esse o seu nome de baptismo).

Deixou-nos, o seu corpo, mas a sua luminosa poesia perdurará para além do Homem, para além da Vida e muito, mesmo muito, para além da Morte!

É isto que distingue o poeta dos outros mortais: os outros morrem mesmo e de verdade!

Quero saudar e preitiar o poeta do Porto, sua Pátria emprestada, socorrendo-me das suas palavras, das mais acertadas e belas da lingua portuguesa:

"Sê paciente
espera que a palavra amadureça
e se desprenda, como um fruto,
ao passar o vento que a mereça."

J. Albergaria

sábado, junho 11, 2005

A aranha

A aranha tinha
Uma teia fininha

Tinha a teia
Uma aranha feia

Era uma teia
Fina e feia
Que tinha
Uma aranha
Feia e mesquinha
Que comia
Tudo o que via

Era uma aranha,
Que tinha uma teia,
Cheia de ronha
Mesquinha e feia.
A teia apanhava
Tudo o que havia
A aranha comia
Tudo o que havia.

a. m.

sexta-feira, junho 10, 2005

Choram morcegos

Choram morcegos


Choram morcegos
De asas de veludo
Chegam os mosquitos
e comem tudo

Coçam-se os anjos
Num alvoroço
Os crocodilos
Comem tremoço

Pelos telhados
Arrulham pombas
Na Palestina
Caem as bombas

Os petroleiros
Derramam crude
Toca o jogral
No alaúde

Pelo mar dentro
Nadam formigas
E as baleias
Cantam cantigas

Está o céu
Pintado de azul
Indica a bússola
O pólo Sul

No alambique
Derrete a neve
A eternidade
É muito breve.


a.m.

Era um barquinho

Era um barquinho
Muito engraçado
Que tinha o fundo
Todo furado

Saiu o barquinho
Pelo mar azul
Em dia de vento
Rumo ao sul

Mas, o barquinho
Não correu mundo

Meteu muita água





e






foi






ao






fundo.


a.m.

quinta-feira, junho 09, 2005

Cantiga de amor

Meu Deus, como são belas
As ondas do teu cabelo.
Como tu me contempelas,
também eu te contempelo.

O que vejo nos olhos teus
Noutros olhos não no vi
O teu coração é meus
O meu coração é de ti.

Não digas que não me amas
E que não gostas mais de eu
O amor que tu me tomas
Abarca a terra e o céu.

Somos duas almas gémeas,
Como duas gotas de água.
Quem as não tem não as teme-as
As dores que são de mágoa.

Não chores que de tristes
Está todo o mundo cheio.
Com o prémio que me destes
Também eu já te premeio.


antónio moreira

Matéria poética IV

Pôr do sol
vã imagem da memória
não digas nada
com lágrimas
as regras são as do insulto fácil
fruto venenoso
paixão
sedutores motivos de inquietação
a. m.

Lamento para a língua portuguesa

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti, nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
sem remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
Talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é a realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas nos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que és igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-se os teus falantes
na terra em que nasceste. eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que resta me iluminas.

Vasco Graça Moura

quarta-feira, junho 08, 2005

Um enorme poeta (ainda pouco divulgado). J.Albergaria

Equinócio de outono
O verão estende a sua sombra até aos teus joelhos
em que a luz se dobra: a isto chamávamos o outouno
primavera
Altas e húmidas ervas são pequenos jactos
de luz que erguem o dia até àquela música
com que o olhar diz árvore por árvore
a manhã dos pássaros - trémulas folhas que
regressam às palavras de que ninguém volta.
A luz escreve ainda a última dança da derradeira terra.
outouno
A incompleta e suspensa arquitectura de um pássaro
contra o bloco maciço, a obscura pedra que imita o mar
despenha o céu que passa em nuvens diante do teu rosto
matéria amante, coisa amada inacabável
Manuel Gusmão (1994-2000)

terça-feira, junho 07, 2005

Sem título

«Não fales comigo enquanto estou a interromper-te».

Locução judaica

Matéria poética III

Entrei
no labirinto,
senti-me...

Nem sei
como me sinto.
Perdi-me!

A. M.

Estrofes pagãs

Antestrofe

Da névoa nos desperta o sentimento
E é forma indefinida:
É força dum mistério e num momento
Espírito da vida.

Estrofe I

Dentre os ciclos da Treva se desbrave
O antigo caos da Sombra desmedida:
E viva em nós melódica e suave
Toda a beleza cósmica da vida.
Que o fulvo e astral encanto das searas
Dos astros e da terra, em seu fulgor,
De altas estrofes, lúcidas e raras,
Mova em nós vivos cânticos de amor.
Da minh’alma às genésicas pinturas
Do fogo das origens me responda
Sua orquestra de ousadas aventuras.
E em livres sentimentos de alto verso,
O meu verbo se anime e corresponda
Nas múltiplas escritas do Universo.

Estrofe II

Do largo e antigo imaginar profundo
Removam-se as proscritas maravilhas:
─ Aparências fantásticas do mundo,
─ Monstros do Mar sulcando à flor das ilhas.
Repassados de artísticos compassos
Aos flavos Sóis e aos tempos vos semeie,
Minha bátega fluida de pedraços,
Forte rima de versos que ideei.
Que o engenho do meu cântico se afoite
Às invocadas órbitas da Noite
Em que me envolve o espírito da vida.
E da força-mistério, no tormento
Da névoa, me desperte o Sentimento
Da grande fé que trago indefinida.

Estrofe III

Era um denso monte de florestas
De altos cedros de aspecto carregado,
Sem perfumes de flor, um monte dado
A rios de sombras lúgubres, funestas.
Já dos lúbricos céus, do fundo espaço,
Vinha o Luar dum fogo apetecido;
E a Sombra dava às terras um compasso
De músicas pagãs amortecido.
E por sítios agrestes que tomara
Para cuidados de alma compassivos
Da discussão das coisas que buscara,
Tomei por essa noite colorista,
Sonâmbula de efeitos primitivos,
Por uns instintos bárbaros de artista.

Estrofe IV

Os seixos dos regatos se moviam
Pelos leitos arientos, sorvedoiros,
E voluptuosos da água se faziam
À música nocturna dos agoiros.
Na miragem dos túrbidos pauis
Olhavam-se pacíficas, errantes,
As estrelas dos paramos distantes
Sob o lúbrico olhar dos céus azuis.
Das árvores e rocha ao som do vento
Tudo ali me responde em redondeza:
Que sonhava em seu vasto ensinamento,
De tão vívida e livre, a natureza
Caber-me toda n’alma e pensamento
Em paisagens de amor e de beleza.


Estrofe V

Estava à maravilha, estranho amante,
Em minhas sete-quintas, e, palácio:
Tinha os astros de meu, profundo espaço e o
Côncavo da alta noite edificante.
Do amor flosofavam-me no peito
Rimas de oiro lavradas, os glossários
Da palavra das coisas e o respeito
Do silêncio dos cedros mortuários,
Quando, ao fundo das árvores do monte,
Mais para a sombra donde me ficava
A clareira da névoa do horizonte,
Apercebi na mente irrequieta
Dos longes uma voz que me embalava
Dest’arte, fortemente, de Poeta:


Estrofe VI

«Eleita e bafejada trancendência:
Homem, fera real, naturalmente
Da mímica das coisas viva essência
Por séculos cuidada ocultamente,
Que lugares da Terra vens buscando
E figuras de estilo te consomem?
Que ar de alma, aveludado e leve e brando,
Do sopro das paisagens te fez Homem?
Que castelo de sonho e fantasia
Que andas velho moiramas a aventar?
Grande vivo de amor melancolia,
Tu tens um coração peninsular
Como um rochedo em bronca penedia
Debruçado nos côncavos do Mar».


Estrofe VII

«Dum bálsamo suave de perfumes,
Tomada de imprevistos, visionária,
A tua alma recorda-me altos numes
Duma heróica beleza antiquária.
Dentre o iletrado encanto das paisagens
Aprendes as palavras que procuras;
Vendo as rezas das seivas que reagem,
Teus olhos são dois lagos de venturas.
Mas força é deste século, ó Mortal,
Ò bárbaro dos brejos e das árvores,
─ Fidalga maravilha universal
É que à torva bruteza empedernida,
Às quebras da água, ao longe, aos frios mármores,
Arranques todo o espírito da vida».


Estrofe VIII

«Vê que tragos de instintos primitivos
São alma da tua alma tão parentes,
No seio geometral dos cristais vivos,
Nas andadas soturnas das sementes.
Vê como as águas fazem sua ideia
Dando aos rios por íntimos trejeitos
Um todo cumprimento de respeitos
Quando as marés preguiçam pela areia.
E, olhos em Deus, levanta à rocha dura
Um cântico de versos naturais,
Que a pedra é fidalguíssima estrutura,
Muito mais familiar do que os metais;
Alma de antigo tempo, alma futura,
É o mármore carnal dos imortais».


Estrofe IX

«Vendo o espaço amovível da amplitude
De um contorno de altíssimas montanhas
E as belezas fantásticas, estranhas,
Do relevo virtual que nos ilude;
Olhar de um fogo de alma apreensiva,
A um tempo visionário e logo sábio,
Na íntima comunhão, do verbo e lábio
Do inânime brutal à vida-viva;
Sem os mitos da torva heroicidade
Canta qual Sileno mantuano
O plástico viver da imensidade.
Aprende amar dest’arte, ó todo artista,
Num bálsamo suave e sobre-humano
O grande amor da Terra-panteísta».

Afonso Duarte

[Ereira, Montemor-o Velho, 1884-1958]

Quando o POVO fala é, sempre, para se levar a sério!

O chamado Tratado Constitucional da União Europeia que, para além de ter sido "aprovado" pela Convenção que o produziu, tem de ser ratificado pelos 25 países que passaram a constelar a bandeira da UE depois de NICE, domina a actualidade mediática.

Dez países já o fizeram, pela positiva e, dois, rejeitaram-no: a França e a Holanda.

O Reino Unido e a República Checa admitem a hipótese de supenderem o processo de ratificação. O nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros terá dito, em reunião restricta e sem a presença de jornalistas, que o Tratado está morto.

Nestas circunstâncias, curioso foi assistir, ontem, dia 6 de Junho de 2005, na RTP 1, a um soberbo debate entre defensores do SIM e partidários do NÃO. Eu diria mesmo que assistimos a um verdadeiro confronto de titãs, tal a qualidade dos contendores em presença.

Na bancada do SIM: Vital Moreira, Ribeiro e Castro e Miguel Beleza.
Na bancada do NÂO: Pacheco Pereira, Sérgio Ribeiro e Jorge Miranda.

Como é bom ouvir ideias, sustentadas em informação de altíssima qualidade e esgrimidas com elegância, com humor e, sobretudo, com uma notável capacidade de se ouvir os arguentes contrários!

Excepção feita a Dr. Sérgio Ribeiro (em representação do PCP?...) que, umas quantas vezes, esbarrou com pesporrência na argumentação inatacável de Vital Moreira e na informação de primeira água de Miguel Beleza!... E tal facto é de estranhar pois se sabe que este ilustre economista pensa, estuda e escreve sobre a Europa, pelo menos, desde os primórdios da década de sessenta do Século XX!

Às vezes, a urgência do argumento, usado como arma de arremesso, prega-nos destas partidas!

Tirante tal situação, que não foi capaz de embaciar o brilho deste debate, apetece dizer que a RTP1, ontem, dia 6 de Junho de 2005, não foi só Serviço Público, mas assumiu-o com uma qualidade ímpar e com intervenientes de qualidade excepcional.

Quanto ao fundo da questão, alinho pelo argumentário final do Professor Vital Moreira: que se faça o Referendo em Portugal, que se façam todos os processos de ratificação do Tratado e, em 2006, proceda-se ao deve e haver: quantos SIM e quantos NÃO.

Então, então sim, tomem os governantes dos 25 países integrantes da UE a decisão que se impõe, para bem dos europeus, dos 25 países que já cá estão e dos outros (Suiça, Noruega, Turquia,etc.), que nos batem à porta: ou mantemos este Projecto de Tratado Constitucional ou fazemos outro.

Até lá, meus caros leitores, que não se inventem crises institucionais, nem se dramatize a situação.

O NÃO da França e da Holanda valem exactamente o que valem: o POVO destes países falou e têm de ser ouvidos e com muito respeito. Pode-se analisar e interpretar os motivos do NÃO e dos votantes SIM destes países, mas, sobretudo, é fundamental respeitar a decisão que estes POVOS tomaram: em primeiro lugar, pelos governos desses países e, em segundo lugar, pelos leaders da UE.

É assim a democracia: o Povo fala e tem, SEMPRE, de ser ouvido e respeitado!

J.Albergaria

As ideias têm cor ? No AmadoraEduca parece que sim

Vi um mar de crianças correr
Atrás de um bando de balões
Que sem destino traçado
Fugia de um monte mal amado.

Sem que soubesse porquê
Enquanto sorria pelo espectáculo
De cor e movimento
Rápido se passeou este pensamento.

Porque correm as crianças atrás de um balão que voa
Como se perseguissem um sonho ali tão perto
Que magia tem um balão cheio de nada
Que as fazem correr à desfilada?

Voam ideais guardados em tão frágeis armaduras
Que mesmo rebentando entre mãos duras
São suficientemente fortes e ousados
Para nos fazer sentir recompensados.

Por muito que saibamos o caminho a seguir
Que todos os destinos tracemos
Nunca é demais encontrar
Momentos, onde o que vale é mesmo sonhar.

Livres de regras, esquemas e esquadros
Correndo atrás do nada
Felizes porque ainda acreditam
Que a vida é recompensada.

Só pela alegria da procura
Pela busca da felicidade
Ali num espaço imenso
A diferença é mesmo a idade.

Os pés dos senhores
Que já não precisam correr
Certos da sua importância
Retiram a alegria de viver.

Ficam os ideais das crianças
Que asas lhes dão para a vida
As cores dos loucos balões
Que nunca lhes roubam as ilusões.

E lá se passou o momento
De loucura e frenesim
Onde após um suspiro
Logo chegou a palavra fim.

Para o ano há mais
Pensaram os doutores
Onde andará o meu balão
Perguntou o dono da ilusão.


Tudo isto se passou
Num ápice
Num pensamento
Porque mais longe que o voo do balão
Só mesmo o desígnio da educação.

NT

segunda-feira, junho 06, 2005

Pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão
[Lisboa 1904-1993]

Matéria poética II - Rima mínima

a
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a

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a
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A.M.

Os olhos do poeta

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da
infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
─ todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca

Tomado de empréstimo II - Abrupto de JPP (J.Albergaria)

El instante

?Dónde estarán los siglos, dónde el sueño
de espadas que los tártaros soñaron,
dónde los fuertes muros que allanaron,
dónde el Arbol de Adán y el otro Leño?
El presente está solo. La memoria
erige el tiempo. Sucesión y engaño
es la rutina del reloj. El año
no es menos vano que la vana historia.
Entre el alba y la noche hay un abismo
de agonias, de luces, de cuidados;
el rostro que se mira en los gastados
espejos de la noche no es el mismo.
El hoy fugaz es tenue y es eterno;
otro Cielo no esperes, ni otro Infierno.

(Jorge Luis Borges)

Tomado de empréstimo no Abrupto de JPP (J.Albergaria)

"La biblioteca existe ab aeterno. De esa verdade cuyo corolario inmediato es la eternidade futura del mundo, ninguna mente razonable puede dudar. El hombre, el imperfecto bibliotecario, pude ser obra del azar o de los demiurgos malévolos; el universo, con su elegante dotación de anaqueles, de tomos enigmáticos, de infatigables escaleras para el viajero e de letrinas para el bibliotecario sentado, sólo puede ser obra de un dios. Para percebir la distancia que hay entre lo divino y lo humano, basta comparar estos rudos símbolos trémulos que mi falible mano garabatea en la tapa de un libro, con las letras orgánicas del interior: puntuales, delicadas, negrísimas, inimitablemente simétricas."

(Jorge Luis Borges)

à procura da Luz

Quando chegará o dia en que a sombra cobre o rio
e as águas se tornam mais claras?
Quando chegará o dia em que a Morte
é o princípio da Luz
e se inicia o ciclo da Primavera?

Pedro Castelhano

domingo, junho 05, 2005

Coro dos empregados da Câmara

É tão vazia a nossa vida,
é tão inútil a nossa vida
que a gente veste de escuro
como se andasse de luto.
Ao menos se alguém morresse
e esse alguém fosse um de nós
e esse um de nós fosse eu…

… O sol andando lá fora,
fazendo lume nos vidros,
chegando carros ao largo
com gente que vem de fora
(quem será que vem de fora?)
e a gente pràqui fechados
na penumbra das paredes,
curvados pràs secretárias
fazendo letra bonita.
Fazendo letra bonita
e o vento andando lá fora
rumorejando nas árvores,
levando nuvens pelo céu,
trazendo um grito da rua
(quem seria que gritou?)
e a gente pràqui fechados
na penumbra das paredes,
curvados pràs secretárias
fazendo letra bonita,
enchendo impressos, impressos,
livros, livros, folhas soltas,
carimbando, pondo selos,
bocejando, bocejando,
bocejando.

Manuel da Fonseca
[Santiago do Cacém 1911-1993]

Emagrecer o Estado

Marques Mendes, líder do maior partido da oposição, considera que o Estado tem que ser mais pequeno, menos gastador, mais económico, ou seja, um Estado à altura da sua dimensão de estadista. Fontes geralmente muito bem informadas asseguram que o novo modelo estatal foi inspirado nos trabalhos de um grande vulto do Estado Novo, a saber, Byssaia Barreto que, como sabemos, foi o fundador do Portugal dos Pequenitos.
Brevemente procuraremos dar continuidade a novas apreciações sobre esta matéria.

A.M.

Superstição

«Não sou supersticioso porque dá azar».


Anónimo

sábado, junho 04, 2005

Matéria poética I

larotilit panglosat
karozatlos akratos
borkatl zirsat

markvost wirlatoz
zudwist sidsat
izodlost mirabolatoz!

A.M.

sexta-feira, junho 03, 2005

Ar puro

«Se o campo tem um ar tão puro como dizem, porque não constroem lá as cidades?»

Alphonse Allais

Testamento

Que fique só a minha vida
um monumento de palavras
Mas não de prata Nem de cinza
Antes de lava Antes de Nada
Daquele nada que se aviva
quando se arrisca uma viagem
por entre os pântanos da ira
além do sol das barricadas
Ou quando um poço que cintila
parece o tecto de uma sala
Ou quando importa que se extinga
dentro de nós a inexacta
irradiação que vem das criptas
em que o azul nos sobressalta
em que à penumbra se diria
que se acrescenta o som das harpas
Ou quando a terra não expira
senão segredos feitos de água
Ou quando a morte nos avisa
Ou quando a vida nos agarra

Adeus ó pombas onças víboras
todas iguais ante as muralhas
Adeus veredas invisíveis
que na floresta nos aguardam
Adeus ó barcos à deriva
Adeus canais Adeus guitarras
Adeus ó sílabas da brisa
Adeus sibilas ninfas cabras
tantas que a Deus se prometiam
mas só adeuses encontravam
Adeus ó deusas de partida
no meu minuto de chegada
Adeus ardentes evasivas
a ver se um pouco as demorava
Se as demorava ou demovia
de tão depressa me deixarem
Adeus ó portas clandestinas
que ao fim da tarde se entreabrem
Adeus adeus íntimas vítimas
das cerimónias implacáveis

Como deixar-vos todavia
se as vossas mãos as vossas faces
ora parecem despedir-me
ora conseguem renovar-me
E tantas tantas tantas ilhas
no mar que não nos limitasse
Como deixar-vos se na linha
deste horizonte aquela praia
tão de repente se aproxima
tão de repente se me escapa
Jorram vulcânicas as crinas
de récuas de éguas subaquáticas
Jorram do fundo E à superfície
crescem as ilhas assombradas
Eis que de longe lembram liras
mas entre as ondas só navalhas
É quando o poeta menos grita
que mais se crê nas suas lágrimas
Fique porém de quanto sinta
um monumento de palavras

Mas não de bronze Nem de argila
E nem de cinza nem de mármore
De fumo sim Do que se infiltra
no coração das velhas máquinas
no estertor dos suicidas
no riso triste dos apátridas
no ondular das gelosias
de onde se espia a madrugada
Do fumo enfim que se eterniza
na longa insónia das estátuas
E que de nós a alma extirpa
não nos deixando nem a máscara
quando é só corpo o que nos fica
para morrer às mãos dos bárbaros
E que nos conta só mentiras
E nos aceita só verdades
Múltiplas ágeis infinitas
sejam as linhas que ele trace
como as que traça a própria vida
sem liberdade em liberdade

Adeus ó fogo Adeus raízes
que todo o fumo alimentavam
E adeus ó mel Adeus urtigas
da minha terra calcinada
Adeus cortiço Adeus cortiça
Ó madrugadas inflamáveis
Já se nem sabe a que sevícias
é que por fim a boca sabe
Nem qual a sombra que improvisa
esta sonâmbula sonata
que apazigua que arrepia
que nos destrói que nos exalta
Nem qual o crime inda mais crime
se acaso chega a desvendar-se
Adeus adeus eterna esfinge
Adeus Não penses que me ultrajas
E lembro tudo o que era simples
antes do nada inevitável
Mas que do nada ao menos fique
um monumento de palavras

David Mourão-Ferreira
[1927-1996]

[Creio nos anjos que andam pelo mundo,]

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia
[1923-1993]

Ay flores, ay flores do uerde pyno

Ay flores, ay flores do uerde pyno,
se sabedes nouas do meu amigo!
Ay Deus, e hu é?

Ay flores, ay flores do uerde ramo,
se sabedes nouas do meu amado!
Ay Deus, e hu é?

Se sabedes nouas do meu amigo,
Aquel que m~etiu do que pos comigo!
Ay Deus, e hu é?

Se sabedes nouas do meu amado,
aquel que m~entiu do que m há jurado?
Ay Deus, e hu é?

Vos me preguntades pólo uoss’ amigo,
e eu bem digo que é san’ e uiuo;
Ay Deus, e hu é?

Vos me preguntades pólo uoss’ amado,
e eu uos digo que é uiu’ e sano.
Ay Deus, e hu é?

E eu b~e uos digo que é san’ e uyuo,
E seera uosc’ ant’ o prazo saydo;
Ay Deus, e hu é?

E eu b~e uos digo que é uyu’ e sano,
e seera uosc’ ant’ o prazo passado!
Ay Deus, e hu é?


D. Denis

quarta-feira, junho 01, 2005

Nobre arquitectura

Instrumentos da nobre arquitectura
que sejam hoje e sempre os teus sinais.
A vida é construção e aventura,
levantemos as novas catedrais!

Com o cinzel recorta a luz suprema
sobre a pedra angular de cada passo
e transforma essa luz em diadema
cingindo a Humanidade num abraço.

Com a régua traça a rectidão
das palavras e actos que semeias.
Conforme trabalhares assim serão
os frutos da seara que granjeias.

Com o esquadro procura a confluência
das linhas vertical e horizontal
e descobre a esquadria onde a essência
do mito se transforma em ritual.

Com o compasso alarga a geometria
do sonho que germinas acordado
e rasga outras naves de utopia
no Templo, infinito do passado.

Com o prumo afere a consciência
que te há-de guiar em cada instante.
No barro da humana contingência
grava o rosto da aurora triunfante.

Com o nível remata a arquitectura
em beleza, justiça e comunhão.
Na pedra dos dias, tosca e dura,
deixa a marca da tua perfeição.

António Arnaut

Igualdade perante a lei

«A lei, na sua majestosa igualdade, proíbe, tanto o rico como o pobre, de dormir debaixo das pontes, mendigar nas ruas e roubar pão.»

Anatole France

Se eu podesse desamar

Se eu podesse desamar
a que[n] me senpre desamou,
e podess’ alg~u mal buscar
a quen me senpre mal buscou!
Assi me uingaria eu,
se eu podesse coyta dar
a quen me sempre coyta deu.

Mays non poss[o] eu enganar
meu coraçon, que m’ enganou,
por quanto me fez deseiar
a quen me nunca deseiou.
Et por esto non dormio eu,
por que non posso coyta dar
a quen me senpre coyta deu.

Mays rog’ a Deus que desampar
a quen m’ assi desanparou,
uel que podess’ eu destoruar
a quen me senpre destoruou.
E logo dormiria eu,
se eu podesse coyta dar
a quen me senpre coyta deu.

Vel que ousas[s]’ en preguntar
a quen me nunca preguntou,
por que me fez en si cuydar,
poys ela nunc’ en mi cuydou.
E por esto lazeyro eu,
por que non poss’ eu coyta dar
a quen me sempre coyta deu.

Pero da Ponte

Visita a Quíron

Quíron queixava-se aos homens das sombras que feriam seus dias
e pediu ao tempo a morte. Mas Quíron falhara na vida pelo que o
tempo não lhe concedia a morte. E Quíron errava pelos bosques como
nosso pensamento erra pela luz. Corria como cavalo mas pensava como
homem pelo que Quíron não era feliz nas madrugadas de gema nítida
no coração adolescente do silêncio. Um ovo alvo como um seio prendia
Quíron à terra. A vida brincava com Quíron. Dizem os antigos que
era verdade. Quíron concebia a luz como movimento para o Caos…

Quíron quirónico é o momento em que nos achamos em excesso na
ondulação tardia das mãos áridas. No crepúsculo Quíron meditava
nos deuses longos que de séculos em séculos acontecem e sorria.
Porque Quíron pediu a morte e não a divindade. Porque Quíron
Galopava pelas palavras como se na areia seus cascos pudessem
voar. Tudo amava Quíron porque tudo passava e Quíron dizia aos
discípulos: rente ao prazer está a morte: diverti-vos. Somos meteo-
ritos pensantes ─ erramos pelo infinito como empréstimo

Mas Quíron dizia a Aquiles: os pés são dolorosos e fatais
para quem ama a vida porque neles se envelhece. Aquiles re-
corda que Quíron tinha o galopar do vento e o espírito dum
céptico e teve de rogar aos deuses a morte porque ainda se
não conhecia o suicídio. Tinha discípulos inteligentes que
disseram grandes coisas mas não conseguiram descobrir a grande
evidência do ovo de Colombo. Quíron se teve filhos foi para
se torturar ─ a noite habitava nele como o odor na morte.

Centauro falhado um tipo sebento e humilde o cavalo da tele-
visão Quíron pastou comigo nas praias sem pasto e nos desertos
de cactos, confidenciou-me amores ilícitos dos deuses instalados
na fácil eternidade do sexo madrugador e calou-me os lábios
besuntados líricos de raízes venenosas. Ah Quíron que me disseste
um dia: olha as árvores bastardo dos deuses, irmão dos homens.
Quando as puderes olhar sem o deslumbramento da infância
então recolhe o corpo à morte que Quíron te perdoa poderes morrer.


Rogério Rodrigues